quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Ruth Laus sempre
Parte III: Sonhar É Permitido... Mas...

"Como pode um autor, no caso uma autora como Ruth Laus, penetrar tão profundamente em personagens assim diferentes, homens tão homens, mulheres tão mulheres? São os mistérios da criação literária. Porém, o modo de penetrar, de incorporar-se nos caracteres retratados mostra um dom para a observação, pois, é da observação que nascem esses contos."
Zahidé L. Muzart



Lauro Junkes*

Muito haveria a comentar sobre os densos dramas das narrativas que se enfeixam na duas partes do pequeno volume Relações (Florianópolis: Editora Letras Contemporâneas, 1994). À medida que se desenvolve a leitura, impõem-se inolvidáveis implicações decorrentes dos títulos - geral Relações e particular "A Ponte", para ceder lugar ao "Impermanência", instigando o trabalho mental do leitor: que "ponte"? Como relacionar o que a quê? Onde residiria o complemento, a plenificação, sempre inatingível, para esses destinos votados à "impermanência", carência, desencontro? Uma epígrafe geral transcreve, em francês, um pensamento de A Shopenhauer: “A paz profunda do coração e a paz perfeita do espírito não se encontram senão na solidão”.

Essa observação conduz a outra correlata: imprescindível notar o elemento psicológico a fundamentar com muita sutileza o desdobrar dos caracteres em suas "relações". Bem superiores a simples observações corriqueiras, profundas intuições, de implicações psicanalíticas, conduzem para além das puras palavras, sempre entremeadas de elipses, lacunas, carência de explicitação, integrando o leitor em constante e árdua tarefa para unir filões, precisar o indeterminado, prosseguir pistas suspensas, tecer a malha dos percalços de uma vida numa plenificada.

Entrecruzando presente com passado, para marcar o futuro, “Av. Atlântica 10º Andar” reduz a “mulher envelhecida”, à espera do impossível encontro com Heitor, porque “em cada móvel estava Eugênia, a rir, vitoriosa”, no condicionamento marcante de Heitor. A ambigüidade polissêmica de “Giselle” evidencia como se impõem, vigorosos e decisivos os subterfúgios do inconsciente para interferirem na realidade. Na amarga solidão da Isabela de "Impermanência", o vazio passar dos anos, na drástica ironia do anual botão de rosa em meio à decoração da casa, conduz à implacável sensação de que "aquelas peças não pertenciam a ela. Ela lhes pertencia". E "O Círculo" que marca os longos anos de Paula, obcecada pela miragem de Júlio, concentra-se na simbologia dos óvulos/fetos em sua pintura - tudo sintetizado em belíssima imagem: "Paula-Júlio, ponteiros marcando diferentes horas em relógios desacertados, a desencontrarem-se na hora de acertar". E ainda no destino desiludido da Raqueline de "A Ponte", buscando a ilusão das viagens sem destino, uma fortuita e frágil relação ressalta a identidade redentora das relações não havidas: as duas suicidas, "amparadas pelas forças da vida, retomam seus destinos".

Sobretudo nessas cinco narrativas, escritas por mulher, focalizadas cada qual por personagem-mulher, desenha-se a solidão de vidas em desencontro, em que a delicada sensibilidade feminina capta com invulgar sutileza a sofrida alma feminina, destroçada pelo destino sem saída. E observe-se que, ao contrário do conto costumeiro, centralizado em apenas único e estreito núcleo dramático, focalizando um episódio ou momento de uma vida, os relatos de Ruth Laus tendem a gérmens novelescos mais amplos, condensando longos anos de toda uma vida que se desfaz em vazia rotina.

Nas cinco narrativas da segunda parte, a visão feminina revela profunda intuição da alma masculina. Para Francisco da Silva, o "sonhar é permitido" o título "Liberdade" marcam ironias fatais. E o inicial lirismo de “A canoa", desenvolvendo clima machadiano de dúbia ambigüidade no contraponto entre Luíza e Jandira aos olhos de Pedro, desemboca numa surpreendente atitude final, não desmentindo a amarga ironia. E a corrosão negativa atinge níveis de violência psicológica quando o infeliz dono do "botãozinho de manacá", não obstante o insistente fato de que "lutador ele foi", vergou ao destino, por virtudes da machadianamente ambígua Inésia. O angustiante monólogo interior de "Primeiro de Abril", desfazendo-se no surpreendente final lírico-humorístico, denuncia a "absurda e paradoxal: Liberdade", em meio à original estrutura arquitetônica do relato, acompanhando o percurso de ônibus pelas ruas do Rio de Janeiro, quando "acabara de ser montada sem a menor divulgação e estreada sem anúncio, a peça a REVOLUÇÃO, a ser encenada em todo o território nacional por tempo indeterminado". Finalmente, "Malmequeres" denuncia as falcatruas que defraudam o escritor que, em sua frustração "despetala" o dinheiro, lembrando muito o milionário falido no filme O Eclipse, de Antonioni.

Na segunda edição, Relações vem enriquecido de mais um relato – “Interlúdio”. O título nos faria indagar de imediato: trecho musical intercalado entre o que e o quê? Trata-se de uma narrativa não longa, 15 páginas, porém perpassada de lances diversificados que bem condensariam os ingredientes de novela. De uma parte, transparece um corte transversal na fervilhante Rio de Janeiro, desde as sombrias ameaças de violência até os líricos recantos que sua bela natureza soube preservar. De outra parte, toda uma ideologia voltada para o aspecto da solidariedade humano-social se interpõe ao suceder dos fatos. Entretanto, é a presentificação do relato que constrói um dinamismo dramático sem subterfúgios, que termina por aportar em paragens que evidenciam como as atrações se processam por vias mais espontâneas e sábias do que os frios raciocínios humanos podem imaginar.

De um enganoso embarque em táxi que não o chamado, processam-se “relações” que o simples acaso não comporta. Assim, elemento acessório vai, aos poucos, impondo sua importância: do motorista titular aos substituto, armou-se toda uma trama, através dos passeios “lava-alma”. Do aspecto profissional passam a insinuar-se outras “relações”. Se as carências não logram dissimulações permanentes, das similitudes carenciais entreabrem-se caminhos que entrecruzam psicologia com odontologia, um dentista-taxista-psicólogo com o esperado “Tratado-de-Amor-Tardio”. O “taxi-liberdade”, abraçado “como única forma de liberdade”, na “fuga de nós mesmos”, passando por caminhos de respeito e ternura, aporta em consultório em que se complementam o “doar e receber”, para alargar sua abrangência e criar uma terapia-prazer. Bela sentença bem sintetiza toda a relação: “As mãos que acariciam recebem, imediatamente, o calor da outra pele” (p. 105). De comedidas atitudes, sóbrias e ponderadas, o eu, em seu solitário universo, formula gestos espontâneos de abertura e encontra a correspondência harmonizante, de modo que as carências infiltram antenas que não deflagram dramas, mas restabelecem calores humanos que nem a idade octogernária logra sufocar.

À semelhança do que ressaltou argutamente Bakhtin em relação a Dostoievski, como este captara com apropriada fineza momentos em que suas personagens se encontravam em crise de consciência, dali transparecendo o caráter polifônico, assim também Ruth Laus delineia destinos amargamente sofridos, conscientizando-se da crise de seus pontos terminais de vida, não tanto da vida biológica, mas da psicológica, afetiva, interior, da vontade e sentido do viver. Nas "relações" inexistentes, a problemática essencial é "a ponte que liga a vida", como especifica um conto. Mas, pergunta-se: liga o que a quê? A breve palavra "vida" poucas vezes adquiriu tamanha densidade enigmática como nestes relatos. E nos meandros psicológicos trilhados pelas situações narrativas, ressalte-se ainda a imposição do terrível complexo de culpa - ao erro deve seguir o castigo - que tanto marcou a tradição judaico-cristã. Examine-se, nesse sentido, "A Canoa", "Manacá" ou "O Círculo", entre outros. Restam veredas inúmeras para o leitor trilhar na ambigüidade polissêmica destes bens trabalhados contos de (sem) Relações. E Ruth Laus, Laus sempre, inscreve-se nas Letras Brasileiras com presença imortal.

Florianópolis, junho de 2.000

Lauro Junkes



(Este é a terceira parte do texto escrito por Lauro Junkes e que encerra o ensaio intitulado Ruth Laus sempre, publicado por ocasião dos 80 anos de Ruth. Foram aqui desdobrados para facilitar a leitura neste Memorial em forma de Blog.)

* Lauro Junkes é presidente da Academia Catarinense de Letras e integra o Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina. Bacharel em Direito com mestrado em Literatura e doutorado em Linguística é professor da UFSC.

4 Comentários:

Às 28 de outubro de 2007 às 16:22 , Blogger Vicente de Percia disse...

RUTH LAUS FOI GRANDE ARTICULISTA DA CRITICA DE ARTE NO BRASIL.ATIVA E COERENTE COM O SEU DINAMISMO FORTALECEU JUNTO AOS COMPANHEIROS A FUNÇÃO DO CRITICO E A ÉTICA NECESSÁRIA PARA EXERCÊ-LA.ROMANCISTA E TEATROLOGA FOMENTAVA ENCONTROS CULTURAIS EXPRESSIVOS REVELANDO TALENTOS E INCENTIVANDO PROJETOS E PRESTIGIANDO VALORES JÁ CONSAGRADOS,SEM DÚVIDA EXPOENTE ONDE QUER QUE ESTIVESSE.VICENTE DE PERCIA

 
Às 5 de abril de 2024 às 12:25 , Anonymous Iole oliveira disse...

Gostaria de conseguir uma
Cópia

 
Às 5 de abril de 2024 às 12:26 , Anonymous Anônimo disse...

Como eu poderia conseguir uma cópia de uma dos livros dela que fala sobre um dentista taxista ?

 
Às 5 de abril de 2024 às 12:27 , Anonymous Anônimo disse...

Ou gostaria de saber onde eu poderia comprar Mais alguns dos
Livros dela ?

 

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