Ruth Laus parte para fazer sua própria viagem ao desencontro
Seria lindo chorar azul, não seria?
Ruth Laus, essa notável menina de 87 anos, arrebatou-me na primeira leitura que fiz dessa viagem. Depois de encontros e desencontros (e ela sabe do que estou falando), num memorável dia na Lagoa da Conceição, entre amigos queridos, cerveja gelada e frutos do mar, após muito falarmos do que vinha, há anos, fazendo pela obra e memória de seu saudoso irmão, Harry Laus, achamos que era hora de pensar um pouquinho na obra dela; daí esta terceira edição de sua “Viagem ao Desencontro”.
Confesso que me espantei com sua linguagem, a maneira precisa de narrar, o olho clínico nas minúcias, a delicadeza e fineza de pensamentos, o domínio sobre as personagens, a narrativa clara e sem truques e, ainda mais, com sua coragem, já que o livro é praticamente uma confissão, quase que completamente autobiográfico, tirantes algumas pequenas partes, como no caso da mãe de Paula, totalmente ficcional, como confessa a autora no princípio do livro.
O desencontro é amoroso, mas, ao fim e ao cabo, ocorre um encontro, também amoroso, com a solidão. É a autora mesma quem diz: “Não é tão penoso viver só”. Ou, ainda: “Só, estamos durante as buscas, quando perambulamos aflitos querendo integrar-nos a momentos aos quais não pertencemos. Só, estamos ao dar-nos sem amor. Só, estamos ao receber o que não amamos. Há de sabermos ter a nós mesmos e retirar das ausências todas as presenças as quais necessitamos que sobrevivam. Elas estarão, todas, ao nosso redor. Não concretas. Não materiais. Mas nossas. Totalmente nossas”.
Por essa coragem, esse desprendimento, esse olhar arguto de quem entregou-se completamente à vida, sem esperança nem medo (nec spe nec metu), estreando no romance com a faca entre os dentes, é que costumo chamá-la de Clarice Lispector do Sul, do que ela dava boas risadas.
Melhor assim, pois como ela mesma diz: “Eu sorri. Ri, mesmo... Era preciso rir”. Só quem já chorou muito pode dizer tranqüilamente isso: “Seria lindo chorar azul, não seria?”
Esta foi a orelha que fiz para o livro que iríamos reeditar. A terceira edição de “Viagem ao Desencontro” era um pedido da própria Ruth. Com a editoração e a capa do livro praticamente prontas (iria lançá-lo no Rio de Janeiro, em outubro), privamos quase que semanalmente nesses últimos meses, às vezes eu, às vezes ela, ligando-nos para tratarmos do andamento do livro.
No dia 3 deste mês, liguei novamente para avisá-la de que o copião estava pronto para as revisões finais, quando me contaram que ela havia sofrido um princípio de derrame. Avisei imediatamente aos amigos mais chegados. Dias depois, para alívio nosso, tivemos a notícia de que ela se recuperava bem e tivemos a certeza de que sairia dessa, acostumada que era a enfrentar dificuldades. Confesso que fiquei preocupado, pois Ruth Laus era o tipo de pessoa que detestava depender de alguém. Optou por isso desde muito jovem, dando conta de sua vida praticamente sozinha, pois não se casou e não deixou herdeiros: a independência era seu lema, que não cansava de defender com unhas e dentes.
Intolerância às meias palavras
Conheci Ruth Laus mais profundamente por meio de minha mulher, Teresa Collares, que Ruth tinha como a filha que não teve. Tivemos alguns problemas, como era de praxe, por sua verve e sua honestidade intelectual e afetiva (pode-se acusar Ruth Laus de muitas coisas, menos de que tenha sido hipócrita). Não mandava recados, o que tivesse a dizer, dizia na lata, na cara do cidadão, doesse a quem doesse. Por isso, muitas pessoas a detestavam. Confesso que prefiro gente assim.
Não farei aqui um histórico da vida de Ruth, que deixo para quem dela tenha mais conhecimento, mas é impossível deixar de contar algumas passagens dessa octogenária especial. Ruth era do tipo de gente que alegrava qualquer ambiente onde chegasse. Tinha uma vontade de viver e uma alegria poucas vezes vistas em pessoas dessa idade. Todos que a conheceram irão concordar comigo.
Uma coisa que sempre me chamou a atenção nela foi a sua coragem e o relacionamento com a vida: não nutria ilusões, falsos moralismos (que sofreu na pele desde menina), não se punha num pedestal, enfrentava a vida e a morte de peito aberto, tentando sempre vislumbrar o outro com o olhar arguto, com a agudeza de pensamento, com sua (por incrível que pareça) delicadeza no trato com as pessoas de quem gostava, sempre fazendo carícias, ficando de mãos dadas com quem falava, sempre com uma palavra amiga, um riso maroto na boca, uma piadinha pronta ou um pequeno palavrão que às vezes assustava quem pouco a conhecia.
Com certeza, Ruth era uma pessoa controversa, mas isso era o melhor que tinha em si: não suportava a burrice, a incompetência, a desonestidade, a falsidade, as meias palavras. Foi uma pessoa inteira, íntegra; ou tudo ou nada; ou oito ou oitenta (parece que preferiu os oitenta) e viveu da vida tudo que ela podia oferecer, intensamente, verdadeiramente.
Nutria uma paixão imensurável por seu irmão Harry Laus. Conheci jamais (parafraseando-a) irmã mais dedicada à memória do irmão-escritor. Reeditou vários de seus livros, doando-os em incontáveis lançamentos bancados do próprio bolso, aqui e em outros Estados, divulgando não só sua obra (de Harry) como incentivando à leitura, ao conhecimento e à propagação da arte pelos quatro cantos.
Perdemos todos uma pessoa que, pelo que Ruth foi, parece estar em vias de extinção: uma mulher corajosa, de seu tempo, fiel as suas idéias até a medula do osso, batalhadora incansável das artes, brigona, alegre, com seus defeitos e suas qualidades, de fibra, de carne e osso, verdadeira, amável, e que lutou com todas as suas forças para ser sempre Ruth Laus.
Nada mais a dizer, a não ser que: “Seria lindo chorar azul, não seria?” Hoje, Ruth, todos os teus amigos, creias, estão chorando azul.
Ah, e manda lembranças minhas ao Harry...
(Texto de Vinícius Alves, editor, publicado no Caderno de Cultura “Anexo” do jornal A Noticia de Joinville em 19/09/2007)
3 Comentários:
obrigado, Egeu, por postar meu texto no blog da Ruth, homenagem mais que merecida.
abraço do vinícius
Nós que agradecemos, Vinicius.
Grande abraço!
CORRIGINDO...UMA DAS MÚSICAS QUE ELA COMENTAVA QUE AMAVA..."A NOITE DO MEU BEM" Dolores Duran
SAUDADES
GISAH ARVING
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