Ruth Laus sempre
Parte I: Mulher Desmascara Seus Desencontros
"Ninguém dirá seja este um romance de estréia. A segurança é tão incomum, sobretudo na movimentação e na caracterização das figuras, que a densidade da narrativa não se deixa sacrificar ao tempo interior. E, se há uma conclusão a retirar-se desse ajustamento entre a narrativa e o tempo interiorizante, logo se verificará que é a linguagem em toda uma força literária de representação. Contar-se-á, pois, com a linguagem como elemento imediato a denunciar em Ruth Laus uma romancista que já estréia definitivamente realizada."
Adonias Filho
Lauro Junkes*
Não tive a felicidade de conhecer a pessoa de Lausimar Laus, alma de privilegiada candência humana, com quem, no entanto, mantive gratificante correspondência voltada para sua obra. Depois conheci Harry Laus, partilhando convívio social e literário com sua marcante figura imbuída de sólida vivência artística. Somente bem depois, e recentemente, o grupo literário Laus se ampliou na abrangência do meu campo cultural: li o romance de Ruth Laus - Viagem ao Desencontro (Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1972), narrativa que inicia e se desenrola com impressionante fluidez, sem qualquer amarra a exageros de narrativa sumária, de abusos descritivos ou de descuidos em lugares-comuns, mas na segurança descontraída de quem desenrola um denso novelo, cujos múltiplos fios mantêm sua frágil autonomia sempre ameaçada e comprometida pelo entrecortante cruzar na rede de relações que constitui o dialogante ser humano.
Viagem ao Desencontro encerra o ambíguo desafio das águas paradas, na sua aparência calma que oculta os mistérios das profundezas. Narrado em primeira pessoa por Paula, tida "em conta de mulher muito vivida", segura e equilibrada, e balzaquiana, o relato se organiza em blocos fragmentários e descontínuos, mas dispostos em seqüência contínua, sem divisão em capítulos . Percebe - se ao final a circularidade da narrativa, centralizada em Paris, donde parte um grupo de mulheres para uma excursão turística por diversas localidades em torno do Mar Mediterrâneo, mas também onde conclui a ciranda sentimental da narradora, em suas viagens de desencontro.
Assim, as aparências cedem espaço a dimensões bem mais profundas: do roteiro turístico, penetra-se cada vez mais num perquirir da inesgotável condição humana, especialmente da condição feminina em seu dilacerante dilema: autonomia e carência; bem como o "desencontro" da viagem supera totalmente o pequeno e concreto discordar de roteiro e aspirações entre Paula e Juan Carlos, para divergências múltiplas na trajetória existencial, deixando entrever os insanáveis sulcos, traumas e desconcertos que o tempo imprimiu em todos.
Embora a narrativa bem demonstre não ser este o problema nuclear, projeta-se como central a problemática da mulher diante do sexo, nas suas relações com o homem. Atente-se primeiramente que todo o relato corporifica a perspicácia sutil da ótica feminina voltada para um universo feminino: a autora é mulher e mulher é a narradora, como o são todas as personagens fulcrais. Tal como Lausimar, também Ruth Laus evidencia ter-se confrontado agudamente com a condição feminina e sua afirmação em meio a um universo marcado por secular machismo. Neste romance é a mulher que constitui o centro. Entretanto, essa mulher vem delineada por um asfixiante contexto: as personagens ativas são todas mulheres, porém mulheres que se defrontam com o implicante epíteto de "solteironas". Essa condição, em grande parte resultante das "raízes da infância", dos traumas, complexos, frustrações e preconceitos herdados, num tradicionalismo repressor, por uma "aprendizagem" de obediência submissa "para trás", adiando questionamentos para "depois", impondo "tabus provincianos" e o impacto do pecado. Para alguém, a problemática entre os pais marcou a concepção de "casamento, para mim, passara a representar tristeza" (p.88). Para outras, a condição de "donzela" é insustentável, mas a estabilidade dum relacionamento apavora. Angustiantes são os relatos embutidos, restituindo a experiência afetivo-sexual de Zélia mulheres que amaram plenamente seus... amantes e, embora cada uma "só receba as sobras", num penoso e constante esconder-se da sociedade, contentam-se sadiamente com esse "amor": "Ela (Zélia) era uma mulher sadia, normal, amava e era amada, não destruía nada; dele só recebia as sobras. Mas, para isso, é preciso haver muito amor" (p. 120).
E o romance todo parece assumir a feição dum denso psicodrama, em que os traumas, frustrações e complexos, anseios insatisfeitos ou recalcados por formas de educação ou mentalidade fechada, afinal explodem ou se extravasam duma forma ou de outra, seja pela simples convivência de portadoras das mesmas ânsias defraudadas, seja pela descontração trazida pelos ambientes da viagem longe do opressor contexto familiar-provinciano, seja mesmo sob a ação de euforias compensadoras ou de distensões movidas a álcool. O divã psicanalítico transfere-se para ambientes e situações nada formais, concretizando todo um processo catártico de liberações, pelo simples fato de abrir válvulas que permitam a extroversão das opressões frustradoras das ânsias.
Daí a página inicial já referir-se à opressão do "nada" (o vazio no "intricado processo de sobrevivência") fazendo surgir o aceno da "felicidade" ("participar de algo que dá alegria" mansa e suave) no encontro com um homem. E logo a seguir, se Yara (o "sargento" sufocando sua insegurança e angústias com a impetuosidade de palavras e decisões), explicita claramente precisar de MA-RI-DO: esse utensílio corriqueiro que toda provinciana tem", a voz da experiência mais madura de Paula revida: "precisas, como toda mulher, de um COMPANHEIRO" (p. 25). Delineiam-se assim, desde logo, as coordenadas básicas desse universo feminino de carências, frustrações e repressões, buscas, ânsias e sonhos - representando a viagem turística pelos diversos países evidente descontração escapista "à rotina de suas vidas.
Aproveitar a fuga, o sonho, era a preocupação não dissimulada de todas" (p. 151), pois, longe da rotina fechada de sua tradição provinciana, desvestem as máscaras impostas, resultantes dos inúmeros condicionamentos educativo-religioso-familiares, imposições do superego defraudando anseios e abortando sonhos, lançando inclusive desafios drásticos como aquele da própria narradora: "quem me indenizaria a adolescência perdida sem passeios de mãos dadas, sem carícias medrosas, sem beijos apressados, tudo evitado em nome do pecado?" (p. 58), traumas que implantam 0 impasse para uma vida normal e harmoniosa, suplantada por agressividade numa paradoxal defensividade: "Nasceu dentro de mim um tremendo duelo: o desejo persistente de ser amada e a incapacidade total de me fazer amar" (p. 61).
Numa feminina coragem que suplanta muitos machismos covardes, o romance transcorre num enfoque realista e desmistificador, evidenciando a indispensável complementaridade entre mulher e homem; confissão da mulher em seu apelo ansioso pelo companheiro masculino, mesmo que tantas vezes este seja de mau caráter e perigoso; a conseqüente busca da afirmação feminina ou feminista, ora acusando casais "de papel passado" nos quais a hipocrisia do homem aparenta dignidade moral, sustentando mas enganando a esposa, enquanto esta se aliena com seu tipo de infidelidade: "as esposas procriam, jogam cartas e gozam descobrindo ou atribuindo, a outras, o que lhes falta coragem para realizarem. Não traem fisicamente seus maridos: entregam-se a personagens de filmes e livros..." (p. 122), ora lançando mordaz ironia: "Haverá algum remédio para deixarmos de amar um homem? - Há uma receita que dizem ser ótima: casa com ele..." (p. 76), ora invectivando a hipocrisia da sociedade que não admite mulher autônoma: "você precisa arranjar um amante", introjetando-lhe a máscara de não parecer "ridícula" mas "evoluída"; para, finalmente, em meio às lições da vida, na lembrança do provérbio da terrinha ("casamento e mortalha, no céu se talham") impor-se a aceitação de conviver com a concepção depreendida por Juan Carlos ("Sem a pessoa certa preferes viver só"), avaliando os pesos dos "desencontros" e do "penoso viver só": "Só, estamos durante as buscas, quando perambulamos aflitos querendo integrar-nos a momentos aos quais não pertencemos. Só, estamos ao dar-nos sem amor. Só, estamos ao receber 0 que não amamos. Há que sabermos nos ter a nós mesmos e retirar das ausências todas as presenças as quais necessitamos que sobrevivam. Elas estarão, todas, ao nosso redor. Não concretas. Não materiais. Mas nossas. Totalmente nossas". (p. 183)
Embora o discurso narrativo se sirva muito sagazmente da visão de fora, embutindo e encadeando blocos narrativos captados cinematograficamente pela transcrição de quadros e cenas dialogadas, sem intervencionismos do narrador, de fato, o que predomina em todo o relato é esse devassamento do mundo interior das mulheres-personagens, o que se concretiza nos diálogos e, sobretudo, nas narrativas embutidas. Nesse sentido, é notório como a narrativa toda desenvolve, com incisiva sensibilidade, um vigoroso contraponto entre a situação presente e fragmentos de lembranças do passado, insinuando claramente como a educação, o puritanismo provinciano, o pecado doma religião mal concebida, foram os causadores dos preconceitos e traumas, gerando insatisfações, anseios não realizados, frustrações e carências que um dia explodem. E é exatamente o resgate desse passado que dinamiza todo o relato, ao mesmo tempo em que lhe confere uma vigorosa e dolorosa tonalidade emotiva.
Os blocos narrativos em que Paula rompe os selos dos seus arquivos íntimos, desmascarando o caráter dos homens que passaram por sua vida, assumem exatamente pontos-chave não só para evoluir a ação, mas sobretudo para o forte humanismo que tudo impregna, denunciando não uma vazia futilidade na busca sexual, mas um profundo sentimento de partilha num relacionamento plenificador, tão difícil de ser encontrado. Ao resgatar, por exemplo, a situação do seu primeiro beijo, a narradora caracteriza o parceiro como: "Era mordaz, irrequieto; via-o em permanente busca de prazeres físicos. Faltava-lhe aquele conteúdo espiritual que procuro nas criaturas" (p. 44), denunciando anseios mais densos do que o puramente sexual. E ao final, avaliando como "cansavam os desencontros", prefere o estar só, com "a metade da felicidade", pois outras realidades compensam com mais solidez: "Melhor voltar. Ir para casa. Reencontrar-me nas presenças tão minhas ali vividas, de sonhos, buscas, esperas; no lado bom da fé, da ternura que um dia eu fora capaz de abrigar; na Presença Maior, que permanece intata em cada ponto por ela tocado, quando corporeamente passara por eles". (p. 183).
E muito significativo é o "caso" último, com o cordobês Ricardo, antes de ir a Paris. Se a noite com Ricardo fora tão intensamente vivida, pois "ele soubera reconhecer a mulher que estava em seus braços; não se apressara" (p. 167), é porque houve uma comunhão, anseios e carências - quadro que constitui modelo bastante aproximado de todo o significado profundo da narrativa inteira. A observação da narradora-protagonista Paula - "Ricardo buscava, na pintura, a maneira de descarregar o peso interior. O espectador sensível e interessado recebe a confissão", após ter analisado "em todos os quadros, reflexos de um conteúdo humano onde a dose de pureza não conseguira sobrepujar a necessidade de pecado " - arma a complexa articulação de toda a narrativa, entre a felicidade e o pecado, entre os anseios humanos incontidos por uma busca do "paraíso perdido" e as "tendências ao pecado", estas últimas tão deturpadas por educação preconceituosa, evidenciando como a vida humana é quase incapaz de desenvolver sadia e feliz harmoniosidade em sua realização plena, por vir marcada pela rotina massacrante e por desenvolver-se pressionada por máscaras que vão resultando de inúmeros condicionamentos e imposições, o que permite encarar desconfiadamente a condição humana: "de repente, caímos dentro da vida. De onde? Por quê? Para quê? Perguntas feitas há milênios".
Dessa forma, a narrativa em seu todo se apresenta descontraída, dinamicamente fluida e variada na sua estrutura aparente, dentro da circunstancialidade quase aleatória dos lugares visitados no contexto do Mediterrâneo. Entretanto, esse quadro espacial constitui apenas superficial moldura para as personagens, cujos dramas, ânsias, buscas, carências, preconceitos e taLus afetivos vão explodindo, sobretudo no lento e paulatino desvelar-se do passado de Paula, deixando entrever, sob as aparências de segurança e naturalidade, episódios dramáticos que não podiam esvair-se sem deixar marcantes frustrações traumáticas, certamente equacionadas com hábil persistência. Trata o romance, pois, de um inusitado devassamento das paragens íntimas da personalidade feminina, focalizando a pessoa humana em um dos seus aspectos mais inalienáveis, o de constituir um inegável ser de relações. E bem evidenciam os dramas encobertos do relato que, insatisfeitas ou mal orientadas tais relações - por introjetada educação preconceituosa ou castradora impositividade - sobrevêm inevitáveis frustrações traumáticas, na desorientação produzida por subterfúgios desperdiçados em mascaradas superficialidades, quando reações dos ditames da razão se entrechocam com o dinamismo não sufocado das emoções.
Enfim, Viagem ao Desencontro se apresenta como narrativa habilmente estruturada, processando-se ardilosamente o encadeamento-encaixe dos instantâneos registrados, num genioso contraponto entre as aparências do presente e seu condicionamento profundo pelo passado.
O passado é feito aflorar através de pretextos bem semelhantes aos de Proust. E em momentos decisivos do relato, explora bem as potencialidades das elipses e lacunas - aspecto muito bem evidenciado por W. Iser -, para não desfazer com imperfeitas explicitações verbais o suspense da sugestão, na participação criativa do leitor. Tudo isso desmentiria cabalmente tratar-se dum romance de estréia, não fossem evidentes os fatos reais de que este foi o primeiro romance escrito por Ruth Laus a partir da década de 1960. E talvez pressentindo o poder vigoroso com que a narrativa fosse impor-se incisivamente ao leitor, adverte a autora no prefácio que "o leitor não exagere a tendência inata de atribuir ao autor todas as peripécias amadas ou sofridas pelas personagens. Pelo menos, por favor, não me dêem a mãe de Paula..." Nessa mesma advertência, discorde-se também da observação de que "o tempo desatualizou momentos", pois tais pormenores, se existem, são ínfimos e insignificativos no quadro geral desse corajoso devassar da intimidade feminina e humana de todos os tempos e lugares.
É no mínimo desconcertante este relato, em sua "moral desalinhavada", de uma narradora aparentemente madura, forte e segura, intervindo não raro como "bombeiro" em meio ao incêndio explosivo do grupo feminino, mas que permite constantemente à sua terna sensibilidade feminina transvasar todo tipo de máscaras, para criar um universo impregnado de humanismo que clama por respeito e condições de realização. Mesmo que fosse único, o romance inscreveria Ruth Laus com destaque entre os romancistas contemporâneos que dominam a estrutura narrativa e, ao mesmo tempo, têm um vigoroso e denso tema a comunicar. A Viagem ao Desencontro das personagens marcou o autêntico "encontro/revelação" da romancista Ruth Laus.
Lauro Junkes
(Este é o primeiro dos 3 textos escritos por Lauro Junkes que constituem um ensaio intitulado Ruth Laus sempre, publicado por ocasião dos 80 anos de Ruth. Foram aqui desdobrados para facilitar a leitura neste Memorial em forma de Blog.)
* Lauro Junkes é presidente da Academia Catarinense de Letras e integra o Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina. Bacharel em Direito com mestrado em Literatura e doutorado em Linguística é professor da UFSC.
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