quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Ruth Laus sempre
Parte II: Em busca das raízes do clã germânico

"Presença de Thalia pode ser lido como a delicada crônica de uma família provinciana onde o gene do histrionismo, da teatralidade introduz-se no conservadorismo social e vai articulando-se de geração em geração até confirmar-se na personagem que encerra o ciclo ficcional. Entrei no texto como na fábula singela e enternecida de uma cidade – Tijucas – nos seus começos históricos e no seu fluir cotidiano. Ressaltaram na minha leitura as pulsações da paisagem provinciana, a sua rotina, os costumes, os sabores, os sons, as palavras, as crenças, a expressividade popular."
Inez Barros de Almeida




Lauro Junkes*

Sendo de 1966 o romance de estréia, em 1989 Ruth Laus trouxe a público seu segundo romance: Presença de Thalia (Rio de Janeiro: R. Laus). Sem olvidar o habilidoso tratamento das personagens demonstrado no primeiro, esse romance diferencia-se por definir um espaço muito específico para seu desenrolar: Tijucas, provinciana freguesia, terra natal da autora.

Na esteira do primeiro, o romance desdobra o reino da mulher. O feminino perpassa todas as páginas, com sensível primazia. Se os negócios e a política permanecem sob o comando masculino, sucede-se toda uma dinastia de mulheres, que decidem, sempre, os destinos da narrativa; da imigrante Anna – esta, sim, presença quase permanente, sustentando gerações múltiplas, desde 1880 a 1940, embora nunca extrapolasse de sua posição complementar -, passando por Thalia, de exuberante mas abreviado reinado, e extendendo-se por Maria, Theodora e a nova Thalia, gerações em sucessividade mas nunca repetitivas. Se a dinastia da nobreza real se perpetuava através do ramo masculino, aqui a primazia cabe definitivamente às mulheres.

Estruturalmente, a narrativa se arma em perfeita sucessão cronológica, com raras passagens em que a analepse resgata algum flash-back, por resgate de recordações. Aliás, essa temporalidade direta parece a mais adequada ao desenrolar dos fatos, porque, tratando-se fundamentalmente de um casal de imigrantes alemães, que veio em busca de futuro mais promissor, esse constante impulsionar para frente corporifica o dinamismo gerador da ação, que nunca se rende a estéreis reminiscências de passadismo, porque a vida necessita ser recriada e realimentada a cada momento, em função do que ainda virá. Se o passado representa experiência, esta, uma vez incorporada, não reclama retornos, porque imperiosa será a marcha contínua para frente.

Inicia com o ano de 1880, quando Rainer Brehm, um dos poucos alemães da freguesia de Tijucas, aguarda a chegada do jovem casal vindo da Alemanha: Anna e Hans Meissen, logo abrasileirados como os Máice. Não tarda e nasce Thalia Rottweil Meissen. Sucedendo-se as décadas, em saltos maiores ou menores, as folhas do calendário/capítulos irão desvelando os anos até 1955, quando a quinta geração retomará referência às primeiras, como que num “eterno retorno” cíclico.

Se a primeira Thalia, na visão ainda ingênua e infantil, mas de quem cultiva muita decisão dentro de si, indagava: “Papi, como se faz para ser São Sebastião?” (p.22 e 23, surpreendendo mais ainda com o desafio: “E como se faz para morrer?”, p.24), a narrativa encerra exatamente com idêntico questionamento da segunda Thalia à avó Maria, com quem fora inicialmente criada: “Vovó como se faz para ser São Sebastião?” (p. 156). Contextos diversificam-se, de Tijucas para o Rio de Janeiro; tempos sucedem-se da década de 1880 à de 1950, porém os ciclos permanecem em alternância, de modo que muitas perspectivas futuras se vislumbram, uma das razões do título Presença de Thalia.

Entretanto, se o futuro a decorrer dessa indagação da segunda Thalia permanece apenas no sugestivo horizonte dos possíveis, explicita-se muito bem como a primeira Thalia, não satisfeita com as respostas às suas indagações, decepcionada mesmo, porque não lograra realizar seus desejos (a vaidade inata explodindo - “A vaidade tomava o tamanho de Thalia”, p. 33) de “passear lá no alto (isto é, no andor do Santo carregado) cheio de flores”, e depois até experimentando complexo de culpa por não ter acompanhado o Santo como simples “anjo”. Vislumbrou, aos 15 anos, num momento complexo da família, uma promessa que não apenas projetaria suas aspirações ao mais alto nível, como também transfiguraria até mesmo o sentido da religiosidade popular expressa na procissão de Corpus Christi, pois Thalia passava a encarnar a mais veneranda personagem feminina da história, a Virgem Maria, numa vivência tão intensa que comprometeria sua própria existência naquele palco de suntuosidade e exibição, em que a projeção pessoal alteraria substanciais valores da religiosidade.

Com anuais inovações e sofisticações, o mito projeta-se ardilosamente no imaginário popular: “Cada ano, à hora da procissão, o rosado do rosto acentuava-se ao sol outonal. Os grandes olhos azuis brilhavam intensamente. E a Vila de São Sebastião do Tijucas venerava aquela ‘Virgem’ que, ano após anos, desfilava mais alta e mais bela” (p. 34). Atente-se, contudo, para o fato de que a linguagem e a crença das pessoas do povo muitas vezes se aproximam da concepção do carma oriental: cada ato tem seu preço e cada qual paga pelo que fez, para não assumir diretamente o juízo popular direto: castigo de Deus, em decorrência de certas atitudes. O que o futuro reservou para Thalia entende-se bem nessa linha de pensamento. Ela própria, na sua última procissão, sentiu-se “figura quase divina”, mas experimenta dentro de si dilacerantes sensações, pois, “dona de todos os olhares, tinha um coração desobediente dentro do peito. Tão agitado, negava-lhe até mesmo o ar” (p.66). Tudo conduz para uma visão reticente sobre a cerimônia do despojamento, após a procissão, e para o casamento, dois dias depois, quando, “a noiva foi a mais bela de todos os tempos”, porém, tomava consciência de “ quão alto preço tinha pago pelo uso, uma única vez, de um traje nupcial ao som da Ave-Maria” (p. 71).

Em meio à forte emoção que perpassa a detalhada narração/descrição dessas vivências cerimoniais, insinua-se inevitável sensação desilusória, como que a queda de um profundo sonho para uma crua realidade. Aliás, as personagens femininas de Presença de Thalia carregam muito fortemente dentro de si o estigma de atrizes de sonhos desvirtuados. Os destinos de Thalia precipitam os acontecimentos, sumarizados: se a procissão do ano anterior fora “a coisa mais esplendorosa” (p. 35), agora ela é lançada num “rever silencioso, detalhe por detalhe, da infância e da juventude” (p. 73), para, na festa do ano seguinte abandonar “definitivamente as procissões terrenas”, ao que se sobrepôs de imediato a voz popular: “É a ira de Deus por ter desprezado sua Santa Mãe” (p. 75).

Torna-se relevante acentuar que Presença de Thalia define muito conscientemente o seu espaço: a florescente freguesia de Tijucas, comunidade ainda não contagiada pelo anonimato da massa urbana, porém terra onde todos se conhecem e fato algum escapa aos olhares bisbilhoteiros. Transparece, na criação do espaço romanesco, um olhar atento e carinhoso da romancista para com sua terra natal. Brotou de sensibilidade artística o delinear da cativante atmosfera de simplicidade solidária, do ingênuo provincialismo, da religiosidade em que o sagrado e o profano se interfundem. O lirismo não se acanha em contracenar com o prosaico narrativo: “O Tijucas levava e trazia barcos com suas velas bojudas de vento. Era outubro e a primavera esbanjava lírios e margaridas em quintais brancos, quando o Açucena encostou” (p.39).

Não obstante os horizontes abertos ao final, Tijucas permanece o autêntico e definitivo palco do romance: ali cresce e se ramifica o clã dos Meissen; ali o próprio Hans Meissen, com a projeção da sua granja e dos seus negócios, conduz todo um jogo de liderança política; ali, na fé inquestionável e exteriorizada de uma população sem altos vôos intelectuais, as festividades e processões religiosas concentram as atenções de todos, e a tal ponto que o profano invade agudamente o tradicional religioso; ali a vida de todos é devassada pelo rastreamento uns dos outros, correm conversas e comentários, levantam-se repetidos e despeitados questionamentos sobre o fato de filhas e netas do clã Meissen sistematicamente casarem com “moços de fora”; mas ali também, reconheça-se, a liderança dos Meissen impõe novo padrão de vida, destacado espírito de compreensão e solidariedade, atmosfera de sensível harmonia e respeito, quase que transformando toda a comunidade num lar de aconchegante calor humano.

A provinciana Tijucas - de horizontes restritos, mas universo que se plenificava autonomamente – condicionou suas heroínas ao realismo conveniente ao clã. Apenas Theodora, transpostos já os cenários locais com os estudos na “cidade” capital e iniciada no Grupo Teatral de Aécio Cunha, estreando com personagem não menor do que Ofélia no drama Hamlet, rasgou, enfim, as amarras, com coerência e verossimilhança, para desvelar outras perspectivas futuras. Um gesto significativo que simboliza o significado dos filhos na família era o de plantar uma árvore. Assim, relembra Anna que, quando chegaram, ela e Hans, ele trouxera uma semente de jaca, que seria plantada logo após a primeira noite de descanso no Brasil: “Ele encarregou-se de furar e afofar a terra, ela de colocar o caroço e cobri-lo com leveza. Logo a primeira árvore não alemã correspondeu generosamente à ternura.” E “sob a jaqueira ‘namoravam’ ou resolviam assuntos sérios. Aquela sombra era território deles. E respeitado. Cada filho possuía sua própria árvore, seu próprio mundo. Nele faziam seus balanços ou viajavam nos navios de seus ramos.” (p.139). Aliás, essa matéria de memória fora concretizada, bem antes, quando nasceu Thalia: “Hans foi ao jardim plantar uma semente de flamboyant. A árvore cresceria com a filha” (p.19). Esse simbolismo de harmonia com a natureza muito revela sobre a vivência familiar.

Não considerando suficiente localizar o enredo de ficção em espaço real – Tijucas –, a autora aproveita, na cronologia em que se apresentam os fatos, as datas marcantes na História brasileira para enfatizar o enraizamento sócio-político da narrativa. Na década de 1890, lances da Revolta da Armada repercutem em Tijucas, pois Desterro sofreu o embate entre Federalistas e Legalistas, quando ocorreu radical imposição dos Legalistas de Floriano Peixoto, também em Tijucas prendendo e fuzilando o Juiz de Direito, de 38 anos. Mais adiante, ameaças da Revolução de 1930 assustam a localidade, mas nada de mais marcante aconteceu, embora anedotas circulassem amplamente pela região, a ponto de que “assim derrubaram a decantada valentia do tijucano” (p. 131). Já a II Guerra Mundial, 1939-1945, de uma parte, “feria os Meissen através dos noticiários de rádio” (p. 138), enquanto, de outra, com o fim da guerra, “a rotina silenciosa do Colégio (Coração de Jesus) foi interrompida pelo ruído de uma cidade em festa: sinos, buzinas, foguetes em profusão” e, por advertência, todos participaram das manifestações, para “evitar interpretações errôneas de que as Irmãs, por serem na maioria alemãs, não estariam felizes” (p.140).

Observe-se como o aspecto da temporalidade, na sua duração narrativa, varia sensivelmente, de acordo com as intenções subjacentes de ressaltar determinados tempos e personagens. Passagens de registro bastante sumário dos fatos decisivos, em que o tempo da diegese se reduz radicalmente em relação ao tempo do discurso narrativo, alternam-se com outras em que a exposição pormenorizada reduz visivelmente a disparidade entre esses tempos. Talvez o mais detalhados desses momentos tenha sido aquele do segmento “1907”, quando surge em Tijucas o “marujo” – de fato médico paulista solteiro – Rodolpho Garcia de Mattos. Justifica-se, porém, estruturalmente, tal tratamento, porque vai processar-se metamorfose notável em relação à “moça-Virgem”, à promessa feita e ao “marujo” atrevido. Aliás, com esse episódio, projeta-se com vivacidade uma personagem antes apagada e depois de inesperado futuro: a irmã de Thalia, Ingrid.

De outra parte, o episódio romanesco de Rodolpho lança luz sobre um personagem da classe popular, simples e pobre – Deoclécio, o popular “Pão-por-Deus”, personagem resgatada pela narrativa, para conferir-lhe valorização condizente com seu foro íntimo, bem acima das condições sócio-econômicas. Embora sua participação, como agente de ação, se restrinja a um só episódio, a simplicidade quase ingênua do seu caráter entremostra um coração sensível de autêntico poeta do povo e um sentimento humano que evidencia o sobrevalor do ser ao simples ter. Aliás, a autora, na sua aberta visão humano-social, fará emergir, mais adiante outras personagens de semelhantes condições. A família dos serviçais Xandoca/Tonica merece sempre sentimento de ternura e familiaridade. E quando a recém-nascida filha de Thalia “nasceu miúda, frágil”, recorrendo-se a simpatias e manifestações de sincretismo religioso para salvá-la e “acalmar a ira do Senhor” que parecia pairar sobre mãe e filha, a voz popular de uma quase anônima, Chica do Eleutério, sugeriu “consagrar a criança à Senhora dos Navegantes”, no batismo, fato com o qual “o bebê deixou de chorar” (p.79/80).

Mas é através dessa filha de Thalia, Maria, que se introduz outra personagem do povo, capaz de iluminar os valores humanos: Belarmino, figura que, nas privações e sofrimentos, adquiriu a estatura de harmonia e bondade, de outro poeta capaz de, a partir da sua morada plenamente suficiente em barco abandonado, aprender a sabedoria de que “a gente não pode apear no meio do caminho” e capitular, mas apreciar as maravilhas gratuitas da natureza: “Há Deus por todo lado(...) Olha só este entardecer, esta calma, este rio clarinho...”, ou então: “Dinheiro aprisiona, o senhor sabe. Pra mim, eu escolhi a liberdade”, contentando-se com a simplicidade: “Alguma coisa pra comer, um cigarrinho de pala vez outra, minha gaitinha... O resto Deus provê: saúde e coragem pra espera” (p. 91-93). Provado no seu amor incondicional por Ednéia, confessa que “fiquei até cego um tempão. Depois Deus me devolveu a vista para que eu pudesse ver esta beleza – olhou atentamente ao redor. – Antes eu não via nada, só Ednéia” (p.95). Embora o romance transcorra em meio social mais elevado, são personagens do povo mais simples, como estas, que projetam luzes que não podem ser olvidadas.

A psicologia das personagens permanece muito afinada com esse influxo contextual. Assim, por mais que se elevem os sonhos das personagens – Thalia Rottweil Meissen, “ figura quase divina” (p. 60), entregando-se à vaidosa compenetração de “ moça-Virgem”, nesse seu “ Primeiro Palco”, ao qual se entregou de corpo, de mente e de sentimento ou Maria que, do “ Brincando-de-Parecer”, sente abrir-se o atrativo do circo aliciando para horizontes infindáveis e a segunda Thalia de Camargo Raposo sugere apenas “O Recomeço”; – elas sentem os sonhos se confinarem nos limites dos seus horizontes, até que, “ao pisar no palco de estréia, Theodora desencarnou” (p.147). O casal Anna/Hans mantém, por toda a narrativa, postura de dignidade, harmonia, respeito e sensibilidade quase exemplares: ”Hans confessava aos tios que toda a sua força vinha da energia, do vigor e do companheirismo de Anna. Habituara-se a consultá-la sempre, mesmo sobre política”. Por exemplo, quando o “marujo” atrevido busca Hans para pedir Thalia, encontrando direta resistência nesse “homem de ferro”, a “habilidade inata” de Anna sempre desembaraça as situações. Quando Hans toma consciência do muito trabalho e pouco lazer no seu território e se iniciam as representações teatrais, Anna revela facetas inusitadas de personalidade, com toda aprovação de Hans. Os encontros de Maria com Raul exigem habilidades muitas dos avós, que sempre se harmonizam nas suas opiniões. Finalmente, quando Hans, aos 80 anos, morre e no seu sepultamento acontece acompanhamento nunca visto, Anna volta-se, com sensibilidade e ternura, para rever o passado, mas sempre com olhar unilateral, buscando Hans... “E como Hans não veio, ela foi ao seu encontro”, também descansando (p. 139).

Não obstante o título do romance ressaltar Thalia, a primeira retornando através da segunda, no “Recomeço”, definindo a circularidade cíclica, a presença que subjaz indelével, embora não ostensiva, é a de Anna. Se o marido Hans conduz o desenvolvimento sócio-político, deve-se creditar à atuação discreta mas lúcida de Anna todo esse desdobrar do universo feminino que a narrativa tão bem conduz. Não é romance de reivindicações feministas, não é narrativa que busque explorar efeitos sentimentalistas – possíveis até a partir de certos acontecimentos, não tenciona sua forma privilegiar malabarismos estruturalistas; trata-se, antes, de criar um relato envolvente, no qual avulta como grande personagem a comunidade familiar de imigrantes alemães, num definido e restrito espaço: a freguesia de Tijucas. Inegavelmente impõe-se ao leitor, ao final, um sentimento de nostalgia, num misto de satisfação e de saudade, ao evocar tempos e ambientes que a esfuziante tecnologia moderna baniu do universo. Também nesse romance impõem-se as considerações de Adonias Filho de que a romancista “mantém as janelas abertas. Muito o que se enxergar, efetivamente, através dessas janelas”.

Lauro Junkes



(Este é o segundo dos 3 textos escritos por Lauro Junkes que constituem um ensaio intitulado Ruth Laus sempre, publicado por ocasião dos 80 anos de Ruth. Foram aqui desdobrados para facilitar a leitura neste Memorial em forma de Blog.)

* Lauro Junkes é presidente da Academia Catarinense de Letras e integra o Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina. Bacharel em Direito com mestrado em Literatura e doutorado em Linguística é professor da UFSC.

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